O "retorno" de Moriarty, tendo Queen como trilha sonora, talvez tenha sido a melhor cena do insosso terceiro episódio da quarta (e provavelmente última) temporada de Sherlock, "The Final Problem". Uma pena que não passou de um "truque" para fisgar a atenção do espectador - quem assistir ao episódio entenderá o porquê.
* O comentário abaixo contém spoilers. Recomendo assistir à série antes de ler.
* O comentário abaixo contém spoilers. Recomendo assistir à série antes de ler.
Adoro muitas das inovações que Steven Moffat e Mark Gatiss propuseram em Sherlock, que é livremente baseada na obra de Sir Arthur Conan Doyle. A própria construção de Jim Moriarty, que fisicamente em nada lembra o personagem descrito nos livros, um professor de Matemática aposentado, foi um ponto bastante positivo da série, já que Andrew Scott interpretou com maestria o papel. O Moriarty de Scott, mais franzino, jovial e sem aquele vozeirão do Sherlock de Benedict Cumberbatch, funcionava como um excelente contraponto a este, já que suas ações criminosas independiam de seu porte físico (em muitas obras os vilões são retratados como maiores ou mais "feios" que os heróis).
E criar uma personagem nova, a partir da uma frase dita por Holmes no último parágrafo do conto "O último adeus de Sherlock Holmes", de Conan Doyle, foi mesmo um passo ousado. Uma ideia bem interessante, mas, infelizmente, mal executada. O desfecho proposto pelo roteiro de Gattis desperdiçou e minimizou Moriarty na trama, fazendo-o ser apenas uma peça no jogo de Eurus (Sian Brooke) e não o maior adversário de Sherlock.
Já que Andrew Scott era um sucesso e dada a importância de Moriarty enquanto personagem no universo sherlockiano de maneira geral (na literatura e em outras mídias), os roteiristas da série não deveriam tê-lo matado tão cedo. Ou, já que estava morto, que assim ficasse e que não fosse chamado a todo momento na série, como se realmente fosse retornar. Embora Moffat e Gattis nunca tenham buscado fidelidade à obra de Conan Doyle na releitura que realizaram, essa solução da criação de uma antagonista que suplanta Moriarty não funcionou, na minha opinião.
Assim, a aparição de Moriarty, embora maravilhosa, foi desnecessária e forçada, em termos de construção de roteiro. Parece que foi algo para agradar os fãs (como eu). E a história das gravações? Acho pouco plausível que Moriarty tivesse se prestado a isso.
Confesso que esse final de temporada foi frustrante para mim. Após um início morno, com "The Six Thatchers", o segundo episódio, "The Lying Detective", trouxe de volta a Sherlock que gostamos de ver. Mas em "The Final Problem", várias coisas soaram incoerentes e inverossímeis. Sabe a ideia da "suspensão voluntária da descrença", o "pacto" que fazemos com uma obra ficcional, aceitando como plausíveis as situações que a narrativa nos apresenta, mesmo que pouco realistas? Pois é, essa noção me ficou bastante abalada nesse episódio. Fiquei me perguntando várias vezes sobre como Euros mobilizou todo aquele aparato nos casos que propôs a Sherlock na prisão (o telefonema para Molly e os três Garridebs, por exemplo). Porém, considerando sua genialidade (maior que a de Newton?), as explicações oferecidas pelo roteiro ainda puderam ser mais ou menos digeridas.
Mas os seus "poderes", como o de "reprogramar" as pessoas com as quais tinha contato e prever datas de desastres analisando o Twitter, é que foram extremamente forçados. Como assim? Isso não é aceitável em Sherlock, um mundo ficcional em que a cientificidade é o ponto alto - afinal, Sherlock Holmes é um "perito na ciência da análise e da dedução". Os casos de "The Hounds of Baskerville" e "The Abominable Bride" são grandes provas disso. Por mais insólita que uma situação pareça, acenando com o terror, como nesses dois casos, no fim, há uma explicação lógica e racional para os eventos. Por isso, se considerarmos a proposta de Todorov, em uma narrativa policial o que deve imperar é muito mais o estranho do que o maravilhoso e o fantástico. Sherlock, por mais inovadora que seja, é uma série que se enquadra na gênero policial, não se desprendeu das amarras desse gênero.
Eurus me lembrou a personagem central de Lucy, de Luc Besson. Porém, a narrativa do filme tinha uma explicação razoavelmente aceitável para os poderes de Lucy (Scarlett Johansson) - embora o final tenha sido também um tanto problemático. Em Sherlock, isso não acontece com Eurus. O modo como suas habilidades são abordadas é incoerente com a proposta da série.
A grande sacada da construção de Sherlock Holmes como personagem é a de que ele não é necessariamente um homem genial. Na verdade, Holmes filtra as informações, só retém o conhecimento daquilo que julga útil para as suas atividades enquanto detetive, como a Química, a Anatomia, o Direito, etc. Em outros campos do saber, por exemplo, a Astronomia, tem parcas noções, simplesmente porque considera um conhecimento irrelevante para si. Além disso, utiliza um método para desvendar seus casos, baseado na observação e na dedução. Por isso, tem habilidades surpreendentes para a resolução de crimes - mas são habilidades, algo que adquiriu e aperfeiçoou com o tempo, por meio de estudo e experimentação, e não poderes ou alguma outra dádiva mágica. Assim é o Sherlock Holmes de Conan Doyle e assim também é o de Gatiss e Moffat.
Mas Eurus não foi desenvolvida dessa forma. A personagem, com suas capacidades "inatas", parece ter sido jogada na história, porque a trama do conto de "O problema final" já havia sido explorada nos episódios "The Reichenbach Fall" e "The Abominable Bride" e então os roteiristas se viram na complicada situação de criar um novo grande vilão. Mas isso era realmente necessário? Não foi para a literatura e mesmo na série vilões como Magnussen (Lars Mikkelsen) e Culverton Smith (Toby Jones) foram excelentes. Magnussen, personagem baseado em Charles Augustus Milverton (do conto de mesmo nome) e no espião alemão Von Bork (do conto "O último adeus de Sherlock Holmes"), tinha potencial para ser utilizado por mais tempo em Sherlock. Sinceramente, eu também esperava a aparição na série do Coronel Sebastian Moran, comparsa de Moriarty na literatura, outro criminoso bastante perspicaz.
Outra coisa que me incomodou bastante nos últimos tempos foi a exagerada importância de Mycroft (Mark Gatiss) e Mary (Amanda Abbington) na série. Adorei a releitura proposta para a personagem e também o novo significado dado a Agra (não mais um tesouro de uma cidade indiana, mas a sigla do grupo de espiões ao qual Mary pertencia). Mas depois de uma morte um tanto novelesca no fim de "The Six Thatchers", Mary continuou de forma desnecessária na série, nos delírios de um John Watson (Martin Freeman) depressivo e que se sentia culpado ao longo do segundo episódio e em gravações. Que mania de ficar trazendo os mortos pra tapar buracos no roteiro e encher linguiça, primeiro Moriarty, depois Mary!
E um ponto que tem causado bastante controvérsia entre fãs da série é a não abordagem do relacionamento entre Sherlock e John como uma relação homoafetiva. Particularmente, achei satisfatório, do ponto de vista narrativo, que Moffat e Gatiss tenham deixado isso em aberto, tal como Billy Wilder fez em seu filme (A vida secreta de Sherlock Holmes, de 1970). No entanto, conforme texto do site Scream Spy, é inegável que essa representatividade seria importante, já que a série é vista por milhares de pessoas em todo o mundo e ainda falta ao cinema à tevê mostrarem relacionamentos gays maduros entre personagens centrais das histórias, sem cair em estereótipos.
Mas ao menos Sherlock conseguiu amarrar as pontas soltas de temporadas anteriores. Se voltar um dia para uma outra temporada - o que acho difícil, considerando as carreiras de Cumberbatch e Freeman no cinema -, será quase que um recomeço do zero.
Apesar de todos os problemas dessa quarta temporada (aliás, há coisas que já não funcionaram bem na terceira), Sherlock é uma série muito boa. Sua segunda temporada e o especial "A noiva abominável" são excelentes! Recomendo fortemente a série! (E prometo textos mais elaborados sobre as temporadas).
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