sexta-feira, 22 de abril de 2016

O caso dos dez negrinhos ou E não sobrou nenhum, de Agatha Christie


Como disse anteriormente, apesar de gostar do gênero policial, nunca tive muita familiaridade com a obra de Agatha Christie. Porém, ao saber da adaptação televisiva de O caso dos dez negrinhos (ou E não sobrou nenhum) exibida pelo canal BBC One no fim de 2015, fiquei bastante empolgada pelos trailers e imagens divulgados. Por isso, decidi ler o livro de Christie antes de assistir à minissérie. Uma boa escolha, que me permitiu aproveitar bastante das duas obras.

Dez estranhos confinados em uma ilha

Em O caso dos dez negrinhos, somos apresentados a um grupo de dez pessoas, que não se conhecem e aparentemente não têm nenhuma ligação entre si (com exceção dos empregados, o casal Thomas e Ethel Rogers), que recebem convites de um casal de sobrenome Owen para passarem alguns dias em sua luxuosa casa em uma ilha na costa de Devon, no Reino Unido. Como a tal Ilha do Negro era alvo de especulação por parte dos jornais, que chegavam a cogitar que pertencia a uma estrela de cinema ou a outra pessoa muito rica, os convidados (a não ser Blore e Lombard), apesar de não conhecerem pessoalmente os Owen, não apenas não desconfiam de nenhuma intenção sinistra como ficam até lisonjeados e aceitam ir para o passeio.

É no caminho para a ilha que conhecemos os personagens e notamos alguns elementos de suas personalidades. Em um trem em direção da estação de Oakbridge viaja o velho juiz Wargrave, em um vagão de fumar da primeira classe; em um mesmo vagão na terceira classe, iam a professora Vera Claytorne, que fora contratada pelos Owen como secretária, e o capitão Philip Lombard (que, logo descobriremos, não era exatamente um militar); em um outro vagão de terceira classe, para não fumantes, estava a religiosa de meia-idade Emily Brent. Em outro trem, do qual teria de descer para fazer baldeação em Exeter, ia o general do Exército McArthur. Estes, ao se encontrarem na estação de Oakbridge, foram levados em carros de aluguel para Sticklehaven, a localidade onde tomariam o barco que os levaria à Ilha do Negro. O Dr. Armstrong e o jovem rico Anthony Marston iam para o porto em seus carros.

Outro convidado, o Sr. Blore, viajava em outro trem, vindo de Plymouth. Curiosamente, Blore tinha informações sobre todos os convidados em seu caderno de notas. Mas o leitor atento logo perceberá não é como Blore que se apresenta para o pessoal em Sticklehaven, mas sim como Sr. Davis - o que será explicado mais tarde. Philip Lombard também não havia recebido exatamente um convite como os outros. Na verdade, fora contrato por Isaac Morris, em nome do tal Sr. Owen, pela considerável quantia de cem guinéus, para estar à disposição do anfitrião na ilha. "O meu cliente conhece a sua reputação como homem prestante em situações perigosas", diz Morris a Lombard, e o tom da conversa nos deixa perceber que poderia haver complicações na estadia na Ilha do Negro.

Os convidados são levados à ilha. Imagem da recente adaptação feita pela BBC.

O marinheiro Fred Narracot leva de lancha os oito convidados para a ilha. Lá chegando, contudo, eles não encontram seus anfitriões, o casal Owen, mas apenas o casal Rogers, que também ainda não tivera a oportunidade de conhecer seus patrões. Narracot, que também fora contratado por Isaac Morris, não pode deixar de estranhar a situação:
O tal Sr. Owen devia ser um cavalheiro de tipo muito diferente. Era engraçado, pensou Fred, que ainda não tivesse posto os olhos em Owen... ou em sua senhora, tampouco. O homem ainda não viera nem uma só vez à aldeia. Tudo fora encomendado e pago por aquele Sr. Morris. As instruções eram sempre muito claras e o pagamento pronto, mas, assim mesmo, aquilo era esquisito. Os jornais descreviam Owen como um homem algo misterioso. Narracott concordava com os jornais. (Cap. II, parte III).*
Algumas peculiaridades chamam a atenção na mansão: no quarto de cada hóspede, há um quadro que contém uma cantiga infantil que conta a história dos "dez negrinhos" ("Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove...") e no centro da mesa de jantar estão dispostas dez pequenas estátuas que também representariam os tais "dez negrinhos" - há que se notar os elementos de racismo presentes na narrativa, conforme discutirei mais adiante. Inicialmente, os convidados acreditam que a cantiga e as estatuetas seriam uma brincadeira dos Owen com o próprio nome da Ilha.

Apesar do caráter insólito da situação, tudo parece correr muito bem. Porém, após o jantar da primeira noite, as coisas tomam um rumo inesperado: de repente, para espanto geral, uma misteriosa gravação é tocada e todos os presentes são acusados de terem cometido assassinatos - o disco tem o sugestivo título de "O canto do cisne". Após um momento de grande indignação e confusão, um dos convidados morre.

A partir daí, um clima de enorme tensão se instala na mansão e todos não tardarão a perceber que estão aprisionados na ilha. Com o passar dos dias, as mortes vão se sucedendo, conforme o que dizem os versos do poema, e as estatuetas vão sumindo, também uma a uma. E o mistério só aumenta. O assassino está ilha, mas quem será? Será que algum dos convidados sobreviverá? Quem são os Owen? As acusações da gravação são verdadeiras? Essas e várias outras perguntas se instalam na mente leitor.

Um romance policial diferente


Publicado originalmente em 1939, quando se iniciava a Segunda Guerra Mundial, O caso dos dez negrinhos é considerado o maior sucesso comercial de Agatha Christie. Já ganhou inúmeras adaptações para o cinema e teatro, creio que até por conta do fato de ser uma narrativa com poucos personagens e locações e do caráter dos diálogos travados, que se prestam à representação. Curiosamente, o livro possui elementos narrativos bastante diferenciados do romance policial típico e de outros romances escritos pela própria autora, principalmente porque os crimes vão ocorrendo à medida em que a trama se desenrola e não temos aqui a figura do detetive.  No epílogo do romance, até vemos dois policiais investigando os elementos encontrados na cena do crime, mas estes estão longe de encarnarem detetives típicos da literatura policial, até por não chegarem a uma conclusão sobre o que houve na Ilha do Negro.

Valendo-nos da tipologia do romance policial proposta por Tzvetan Todorov, podemos notar em O caso dos dez negrinhos características do romance de enigma, do romance negro e do romance de suspense, de forma que este livro de Agatha Christie não se encaixa perfeitamente em nenhum dos tipos descritos pelo teórico da literatura. 

Em geral, no romance policial clássico (o romance de enigma), quando a narrativa se inicia o crime já ocorreu e o que acompanhamos é a investigação. Para Todorov, há nesse tipo de narrativa duas histórias, a do crime (a primeira história) e a da investigação (a segunda história), de forma que a segunda acaba sendo a história contada no livro, de fato, enquanto a primeira não pode estar diretamente presente. Já no romance noir ou negro, de acordo com Todorov, essas duas histórias se fundem, uma vez que o crime não acontece antes da ação do romance, mas sim coincide com ela. Não há mais espaço para o mistério do romance de enigma, mas a curiosidade e o suspense surgem como formas de prender a atenção do leitor, e a violência se faz mais presente (o próprio detetive não é mais imune aos perigos).

Uma terceira forma de romance policial é a que Todorov chama de romance de suspense e que, segundo o autor, une características do romance de enigma e do romance negro - mantém o mistério do primeiro, mas apenas como ponto de partida para a ação que se desenvolve no presente e que ocupa espaço central no livro, como no noir. Existiriam dois subtipos dessa forma de romance policial, o do "detetive vulnerável" e a "história do suspeito-detetive".

O caso dos dez negrinhos possui uma estrutura simétrica (as mortes que ocorrem conforme os versos da cantiga), comum no romance de enigma, além do mistério, do suspense e da violência, que ocorrem nos romances negros e de suspense. Mas possui certas características que não permitem enquadrá-lo em nenhum dos três subgêneros descritos por Todorov. Além de não possuir um detetive, a narrativa de Christie apresenta a separação entre as duas histórias, mas não da forma típica do romance de enigma: é a história do crime a principal do livro, enquanto a da investigação ocupa um espaço pequeno e subalterno, no epílogo. 

Aliás, tal investigação não apresenta a solução para o mistério. E mais: o epílogo é duplo, além da parte da investigação feita pela Scotland Yard, traz em sua segunda parte uma carta, essa sim com a resolução do caso. A inserção desse manuscrito ao final da narrativa é um recurso interessante, não só pela presença do gênero epistolar dentro de um romance, mas por seu próprio conteúdo, que subverte as "regras" do gênero policial.

Agatha Christie e a polêmica em torno do politicamente correto


O caso dos dez negrinhos tem como base uma popular canção infantil britânica, com notório caráter racista e de violência. Ao que parece, havia algumas outras versões dessa cantiga e ela chegou também a ser utilizada em livros infantis, no século XIX e no início do século XX. Seja como for, ainda que o objetivo aparentemente seja o de ensinar as crianças a contarem até 10, o que essas diferentes versões da canção revelam é que os "negrinhos" são sempre "eliminados" um a um, em geral, de forma agressiva. Acredito que assim como nossas cantigas infantis, que nos últimos anos têm sido revistas, essa canção também não tenha resistido ao tempo. Provavelmente, foi fruto da mentalidade colonialista e escravista e, considerando essa passagem do século XIX para o XX, das teorias raciais e do imperialismo.

Mas o conteúdo de caráter racista é perceptível também na própria narrativa de Agatha Christie. É assim que na percepção sobre a Ilha do Negro que têm Blore e Vera, conforme os trechos abaixo:
Ilha do Negro. Lembrava-se de tê-la visitado em menino... Um rochedo malcheiroso, coberto de gaivotas, a cerca de uma milha da costa. Recebera esse nome por causa da semelhança com uma cabeça de homem — um homem de lábios negróides. (Cap. I, parte VIII).
Fizera dela uma idéia diferente, próxima da costa e coroada por uma bela casa branca. Mas não se via casa alguma: apenas a silhueta abrupta do rochedo, que lembrava vagamente uma gigantesca cabeça de negro. Seu aspecto era um tanto sinistro. Vera teve um leve estremecimento. (Cap. II, parte II).

Nos Estados Unidos, o título do livro causou desde sempre mal-estar, por conta da conotação negativa do termo niggers, e foi por um tempo substituído por Ten Little Indians (como se isso fosse menos preconceituoso...) e mais tarde por And Then There Were None, título que tem sido adotado até hoje. No Brasil, o livro teve várias edições e traduções e é possível encontrá-lo com nomes como Convite para a morte, O vingador invisível e, mais recentemente, E não sobrou nenhum (que é um grande spoiler, por sinal). A tradução que li foi a feita por Leonel Vallandro, publicada pela editora Globo, em uma versão que encontrei digitalizada na internet. Nas novas edições da obra, a Ilha do Negro passou a ser Ilha do Soldado e os negrinhos agora são soldadinhos.

Mas, de acordo com Alfredo Monte, a patrulha do politicamente correto não foi totalmente eficaz. Na nova tradução brasileira, feita por Renato Marques, com o título de E não sobrou nenhum, segundo o crítico literário, o tratamento preconceituoso dispensado a Isaac Morris, personagem de origem judaica, permanece. Na edição que li, por exemplo, é possível ver Morris descrito como "judeuzinho", "tipinho oleoso", "sujeitinho", de "espessos lábios semíticos". O estereótipo do judeu envolvido em negociatas também aparece em vários trechos do livro, como nas impressões de Lombard citadas abaixo:
Desconfiava, porém, que o judeuzinho não se deixara enganar. Isso é o que há de pior quando se trata com judeus... Impossível enganá-los em questões de dinheiro: eles sempre sabem. (Cap. I, parte III, grifo da autora).
Por outro lado, não pode passar despercebida a descrição positivada de Anthony Marston como um "deus escandinavo", em um momento histórico de ascensão do nazismo.

Outro ponto que chama a atenção é a questão de gênero. Monte lembra que em determinado ponto da narrativa, quando os criados morrem, são as mulheres restantes, Emily Brent e Vera Claythorne, que assumem as atividades domésticas da casa. Observo ainda dois outros pontos: a forma depreciativa como Emily Brent se refere à jovem que cuidava, Beatrice Taylor, que, ao que tudo indica, engravidou; o Dr. Armstrong, como famoso médico de senhoras que sofrem "dos nervos" (há indícios de que praticava cirurgias ginecológicas em mulheres "histéricas", o que teria vitimado uma de suas pacientes) e o fato de este dar tapas no rosto de Vera para "acalmá-la", o que todos consideram uma atitude normal.

E um dos aspectos que mais me impressionou (negativamente, é claro) na leitura do livro - e que não sei como ficou após as alterações das últimas edições, já que não tive a oportunidade ainda de confrontar as diferentes versões - é a forma como as populações africanas são descritas. Os africanos não tratados como pessoas, de fato, são considerados inferiores, sub-humanos - são tidos como "apenas nativos", como diz Vera.

Após ouvirem as acusações do disco, todos os presentes negam terem cometido tais crimes, menos Philip Lombard, acusado de ser responsável pela morte de vinte e um homens, pertencentes a uma etnia da África Oriental, em 1932. O modo como Lombard - que, provavelmente, atuou como mercenário na África - e depois Vera se referem a essas pessoas revela novamente uma visão racista e imperialista:
Lombard tomou a palavra. Seus olhos brilhavam maliciosamente.
— A respeito desses nativos...
— Sim, que diz sobre eles? — atalhou Marston. Philip Lombard sorriu.
— A história é perfeitamente verdadeira. Abandonei os pobres diabos. Instinto de conservação. Estávamos perdidos no mato. Eu e mais um par de sujeitos apanhamos todos os alimentos que havia e nos raspamos.
O Gen. Macarthur interpelou-o severamente:
— O senhor abandonou os seus homens?... Deixou-os morrer de fome?
— Receio que não seja um gesto muito nobre — disse Lombard —, mas a autoconservação é o primeiro dever de um homem. E, como sabe, os nativos não se importam de morrer. Eles não pensam como os europeus a esse respeito.
Vera retirou as mãos do rosto e disse, encarando-o:
— O senhor deixou que eles... morressem? Lombard respondeu:
— Deixei que morressem.
Seus olhos irônicos fitavam os olhos horrorizados da moça. [...] (Cap. IV, parte II, grifo da autora).
— Ah! agora entendo. Bem, há esse tal Sr. Lombard. Ele admite que abandonou vinte homens à morte.
— Eram apenas nativos... — disse Vera.
— Brancos ou pretos, ele são nossos irmãos — retrucou duramente Emily Brent.
"Nossos irmãos pretos... nossos irmãos pretos", pensou Vera. "Oh! que vontade de rir! Estou ficando histérica. Não sou mais a mesma..." (Cap. VII, parte I).
Por conta de todas essas questões devemos deixar de lado esse livro de Agatha Christie? Claro que não! Pessoalmente, não concordo com nenhum tipo de censura a uma obra literária ou de qualquer outro tipo. Creio devemos considerar livros e autores dentro de seu contexto histórico. Agatha Christie foi uma mulher de seu tempo e devemos encará-la como tal, para não corrermos o risco de cometer anacronismos. Além disso, como bem observa Alfredo Monte, o "vingador" do romance não se importa com gênero, classe social ou raça/etnia - é implacável com todos os que atravessam o seu caminho.

Em vez de cortes ou substituições, sou a favor de que o texto original seja preservado, conforme a vontade do autor, mas que seja acompanhado de notas explicativas, prefácios, posfácios e outros recursos, elaborados por estudiosos da obra do autor, críticos literários, historiadores, entre outros, esclarecendo pontos como esses, a respeito da visão de mundo da época em que a narrativa foi composta. A Companhia das Letras adotou esta postura ao editar no Brasil as obras do belga Hergé - é famosa a controvérsia envolvendo a aventura de Tintim na antiga colônia do Congo Belga, hoje República Democrática do Congo, entre outras situações.

Em termos de construção da narrativa, O caso dos dez negrinhos é uma obra interessantíssima e que tem influenciado diversos autores na literatura, teatro e cinema. Na minha opinião, crime mesmo é alterar algo sem a concordância do escritor ou impedir o acesso à dada obra.


REFERÊNCIAS:

CHRISTIE, Agatha. O caso dos dez negrinhos. Tradução de Leonel Vallandro. 15. ed. Porto Alegre: Globo, 1983.
MONTE, Alfredo. O grotesco e o arabesco do politicamente correto: o assassinato dos dez negrinhos. In: Monte de Leituras: blog do Alfredo Monte. Disponível em: <https://armonte.wordpress.com/2011/05/31/o-grotesco-e-o-arabesco-do-politicamente-correto-o-assassinato-dos-dez-negrinhos/>. Acesso em: 21 abr. 2016.
TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: As estruturas narrativas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. (Série Debates).

* Obs.: Optei por não adicionar os números das páginas nas referências aos trechos citados, pois a versão do livro que li foi digitalizada e, provavelmente, a organização das páginas não coincide com o original impresso. Por isso, indico os capítulos e as partes em que se localizam os trechos.

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