sexta-feira, 1 de julho de 2016

Um vale nada feliz: a primeira temporada de Happy Valley


Em uma pequena cidade da Inglaterra, um contador insatisfeito com sua colocação na empresa onde trabalha arma o sequestro da filha de seu chefe. Mas várias situações que não faziam parte do plano original começam a ocorrer e o que deveria ser uma forma rápida de obter dinheiro acaba se transformando em um série de crimes brutais. E no meio disso tudo há uma policial com sede de justiça.

Com uma premissa parecida com a do filme Fargo (1996), a primeira temporada de Happy Valley foi ao ar em 2014 pela rede BBC1. Apesar das similaridades com a obra dos irmãos Ethan e Joel Coen, a série inglesa trilha caminhos próprios. Uma trama coesa, com personagens de grande complexidade e atuações excelentes, especialmente as de Sarah Lancashire e James Norton, fazem com que assistamos aos episódios quase sem respirar. Não se deixe enganar pelo título da série e pela música animadinha da abertura ("Trouble Town", de Jake Bugg). Happy Valley é dureza!

* O comentário abaixo contém spoilers. Recomendo assistir aos episódios antes de ler.

"Vale Feliz"?


Criada por Sally Wainwright, que assina o roteiro de todos os episódios, além de dirigir alguns, Happy Valley acompanha o cotidiano da sargento da polícia Catherine Cawood (Sarah Lancashire, de Last Tango in Halifax), que, trabalhando em uma cidade pequena, tem como maior parte das ocorrências perturbações à ordem pública, em geral, ocasionadas por jovens usuários de drogas.

Aliás, o tráfico de drogas é provavelmente o maior problema da localidade, já que o uso indiscriminado de entorpecentes parece ser algo relativamente comum entre os jovens, muitos deles desempregados e sem grandes perspectivas. O que a série procura abordar - e sem cair em um discurso careta ou de falso moralismo - são os problemas familiares e sociais que a dependência química pode causar e a frequente associação do tráfico de drogas com outros crimes.


Em um dos episódios, por exemplo, Catherine é chamada para resolver uma ocorrência de trânsito envolvendo um político da cidade, que tenta dar uma "carteirada" na policial - em seu carro, há um pacotinho com cocaína. Catherine dá voz de prisão ao figurão, que a ameaça, e manda o pacote para análise, porém seus superiores exigem que ela alivie a barra do vereador. A sargento se nega, mas, para sua surpresa, o material enviado para análise acaba sendo adulterado, o que impede a comprovação de que o político portava drogas. Catherine fica irada, mas pouco pode fazer. Um tipo de situação que demonstra a corrupção institucionalizada na polícia e na política.

Há ainda o caso de Ashley Cought (Joe Armstrong, de The Village e Henry IV), que mantém um negócio de aluguel de trailers para famílias como fachada para sua real atividade, o tráfico de drogas. E Ashley terá ainda participação fundamental no crime no qual se centra a temporada da série.


A rotina do pequeno Vale de Calder (o tal "Vale Feliz" do título) se vê, então, alterada com o sequestro da filha de Nevison Gallagher (George Costigan), grande empresário da região, e por uma série de crimes violentos que se seguem, como a morte da policial Kirsten.

Ou um vale de lágrimas?

Na sequência inicial da série, a própria Catherine, enquanto tenta evitar que um rapaz ateie fogo em seu próprio corpo, faz a sua apresentação, mostrando desde já ao espectador um pouco de sua problemática vida familiar: "Sou Catherine, a propósito. Tenho 47 anos, estou divorciada, moro com minha irmã, que é uma viciada em heroína em recuperação. Tenho dois filhos crescidos. Uma morta, um que não fala comigo e um neto. Então... É complicado. Falemos sobre você".


E, logo descobrimos, de certa forma, o problema com drogas está também na raiz do grande drama pessoal enfrentado por Catherine. Oito anos atrás, sua filha Rebecca (Becky) foi estuprada e acabou engravidando. Como não contou nada aos pais logo após sofrer o abuso, a gravidez não pode ser interrompida. Mas Becky não suportou o trauma, e acabou se matando pouco tempo depois de dar à luz.

Com a morte precoce da filha e decidindo criar o neto contra a vontade do marido e de seu outro filho, Catherine vê seu casamento e sua vida familiar ruírem, encontrando apenas o apoio da irmã Clare (Siobhan Finneran, de Downtown Abbey). O responsável pelo estupro, Tommy Lee Royce (James Norton, de Grantchester e War & Peace), foi preso logo em seguida, mas não por este crime, e sim por tráfico de drogas, pegando uma pena de oito anos de reclusão.


É difícil precisar o tipo de relacionamento entre Becky e Tommy, já que a série não utiliza flashbacks para mostrar o que ocorreu em 2006 e tudo o que sabemos sobre a filha de Catherine é o que os outros personagens contam. Mas, pelo que podemos apreender do que diz o outro filho da policial, Daniel (Karl Davies, de Kingdon Game of Thrones), a jovem também chegou a se envolver com drogas ou não tinha um comportamento dos melhores, tendo então conhecido o desordeiro Tommy Lee Royce, por quem Becky, de acordo com Daniel, realmente era apaixonada. Obviamente, por mais rebelde que fosse Becky, nada justifica a violência cometida por Tommy.

O grande problema para Catherine agora é que Tommy Lee Royce cumpriu sua pena e está em liberdade novamente, o que ela vê como um risco à segurança do neto Ryan. 


"A ocasião faz o ladrão"

Uma das perspectivas exploradas por Happy Valley diz respeito ao fato de que crimes terríveis não são cometidos apenas por sociopatas (e a série tem um), mas também por pessoas comuns, acima de qualquer suspeita. O que está em jogo são as motivações e oportunidades. Às vezes, um encontro casual pode levar uma pessoa a cometer um ato criminoso, se já existiam interesses e motivos que poderiam levá-la a tal. Assim, se, conforme o ditado, "a ocasião faz o ladrão", uma outra expressão popular não parece menos verdadeira na série: "o ser humano é capaz de qualquer coisa". Tal é o que ocorre com Kevin Weatherill (Steve Pemberton, ator famoso por participar de sitcoms).


Kevin é um homem comum, de quarenta e poucos anos. Bom empregado, pai dedicado e marido exemplar, que cuida com todo zelo da esposa com esclerose múltipla, leva uma vida pacata de classe média. As coisas começam a mudar quando sua filha mais velha tem a oportunidade de ingressar em uma escola conceituada, mas cujo valor das mensalidades está muito além de seu orçamento. Kevin, então, pede um aumento de salário a seu chefe, Nevison Gallagher, que, em um primeiro momento, diz não ser possível.

Porém, mais do que a frustração de receber um não do patrão, Kevin, no fundo, alimenta um grande ressentimento em relação a Gallagher, pois acredita que seu pai deveria ter sido sócio do empresário no passado e que ele próprio agora, em vez de apenas um empregado, deveria ter uma parte do negócio.


Ao ir passar um fim de semana com a família em um trailer que aluga na fazenda de Ashley Cowgill, Kevin acaba acidentalmente descobrindo que ele está envolvido com tráfico de drogas. Temendo ser denunciado, Ashley ameaça Kevin. É então que o contador percebe que seu locador é também uma pessoa ambiciosa e sem muitos escrúpulos.

Assim, Kevin expõe seu descontentamento a Ashley e propõe que este sequestre a filha de Nevison, Ann (Charlie Murphy), em troca de um resgate milionário, que poderia ser dividido entre os dois. Ashley topa e, bom vigarista que é, consegue ainda reverter a situação, para ficar com a maior parte da bolada. Para executar o plano, Ashley convoca dois de seus empregados, Lewis Whippey (Adam Long) e Tommy Lee Royce.


Quando percebe a burrada que cometeu, Kevin tenta voltar atrás e até procura a polícia, mas já é tarde demais. E aí tudo só vai se complicando, fugindo do controle. Catherine, por sua vez, desconfia que em seu retorno Tommy não estaria envolvido com boas coisas e fica em seu encalço.

Aqui os fracos não têm vez

Com uma trama que se desenvolve em um ritmo ágil e excelentes atuações, Happy Valley em muitos momentos tira nosso fôlego, tal é nível de tensão em que os episódios se desenrolam. É uma série forte, com temas duríssimos de serem abordados em televisão e sequências violentas. Contudo, não é uma série apelativa, pois mesmo as cenas mais pesadas nunca estão lá de forma gratuita.


E mesmo um personagem como Tommy, capaz de monstruosidades, não é retratado de forma plana ou caricata. Apesar de possuir um sério desvio de caráter e de comportamento, ele também demonstra humanidade. Em uma cena em que está escondido da polícia, por exemplo, ferido e acuado, ele chora. Catherine, por sua vez, também não é uma heroína perfeita. Em sua sede de vingança, ela também acaba tendo atitudes por vezes condenáveis. Acredito que essa construção dos personagens, que se apresentam ao espectador sob muitos ângulos, é o melhor da série.

Uma segunda temporada de Happy Valley foi ao ar esse ano e a série tem conquistado importantes prêmios, como BAFTAs. E, provavelmente, teremos uma terceira em 2017.

Recomendadíssima!



Mais informações:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

 
Citrus Pink Blogger Theme. Design By LawnyDesignz. Custom by Notas Dissonantes. Powered by Blogger.